Um fantasma ronda a democracia brasileira: o fantasma de um sistema eleitoral não confiável e não auditável, que a cada eleição lança mais e mais dúvidas e questionamentos legítimos sobre se a vontade da maioria do eleitorado de fato prevaleceu e foi refletida nos resultados oficiais que proclamam os vencedores de cada pleito.
Essa fantasma surgiu em 1996, durante o governo do tucano Fernando Henrique Cardoso, quando foi adotada pela primeira vez a votação eletrônica nas eleições municipais daquele ano, nas quais cerca de um terço do eleitorado nacional votou por meio da urna eletrônica, vista inicialmente por uma parcela da opinião pública como uma novidade positiva, principalmente por conta da rapidez na apuração e divulgação dos resultados.
Apresentados como uma conquista e um avanço tecnológico, o sistema de votação eletrônica e a consequente apuração secreta representou na verdade o início de um processo de obscurecimento de nosso sistema eleitoral, que foi tornando-se cada vez menos transparente, até transformar-se numa caixa preta estranha a qualquer processo que se pretenda democrático e legítimo.
Este obscurecimento e falta de transparência teve seu ponto máximo nas eleições de 2014 que reconduziram a petista Dilma Rousseff à chefia da Nação sem que ela tivesse qualquer base política e eleitoral para lograr vitória naquele pleito, como ficou evidenciado praticamente no dia seguinte à eleição, quando milhares de brasileiros começaram a sair às ruas denunciando a fraude nas eleições e contestando a legitimidade da suposta reeleição da petista.
A partir daquele ano e desde então, os questionamentos sobre a lisura e a falta de transparência do sistema eleitoral brasileiro passaram a fazer parte do debate nacional. Iniciativas como a do então deputado Jair Bolsonaro de introduzir o mecanismo do voto impresso, aprovado pelo Congresso Nacional, serviram de termômetro de aferição do grau de desconfiança do eleitor brasileiro com um sistema eleitoral baseado em votação eletrônica não auditável e apuração secreta.
O voto impresso aprovado duas vezes pelo Congresso Nacional em 2015, sendo que na segunda vez foi para a derrubada do veto da então presidente petista, foi posteriormente declarado inconstitucional por decisão do Supremo Tribunal Federal a partir de iniciativa da então Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, que usou o argumento obtuso de uma suposta quebra de sigilo e da liberdade do voto devido à impressão.
Eleições municipais desse ano consolidaram a desconfiança no sistema eleitoral
As eleições municipais deste ano consolidaram a falta de confiança no sistema de votação eletrônica não auditável com apuração secreta. Inúmeros relatos de candidatos e eleitores têm mostrado a diferença entre os boletins de urna e os números exibidos nas totalizações do respectivo Tribunal Regional Eleitoral de cada Estado.
Análises independentes também mostram o comportamento estatístico absolutamente improvável da distribuição dos votos por zonas eleitorais, principalmente na capital paulista. A interrupção da apuração ocorrida logo após o seu início e sua retomada poucas horas depois com quase totalidade das urnas apuradas reforçaram as desconfianças.
As explicações dadas pelo Tribunal Superior Eleitoral tanto para a invasão do sistema por hackers quanto para a suposta “falha de processador” de um suposto super computador, que teria sido utilizado para a totalização centralizada dos votos, suscitaram ainda mais dúvidas e desconfianças por parte do público.
Nas eleições municipais deste ano repetiu-se, portanto, o mesmo enredo que tem sido observado a cada eleição: ao final da apuração de cada pleito, o que permanece é a dúvida sobre se os resultados apresentados trazendo os vencedores e perdedores correspondem de fato à vontade da maioria do eleitorado.
Em meio a este ambiente de desconfiança, iniciativas como a da deputada federal Bia Kicis de introduzir o voto impresso, ou a do deputado federal Eduardo Bolsonaro de apresentar proposta proibindo o voto à distância, ilustram o quanto nosso sistema eleitoral está viciado e precisando de mudanças urgentes, para o bem da democracia.
No entanto, é preciso ao nosso ver ir ao cerne da questão: a origem dos vícios do sistema eleitoral brasileiro reside na sua centralização por um órgão que desempenha ao mesmo tempo as funções executivas de organizador das eleições, as funções legislativas ao baixar normas que têm força de lei, usurpando assim uma prerrogativa do Poder Legislativo, além de desempenhar também a função judicial, ao atuar como juiz de cada processo eleitoral, podendo até mesmo cassar mandatos.
É evidente que esta anomalia, que é quase uma aberração institucional, não pode persistir. Um órgão com as atribuições que tem hoje o TSE é incompatível com o ordenamento democrático clássico. Neste sentido, é necessário que seja apresentada uma Proposta de Emenda Constitucional reformulando todo o sistema eleitoral brasileiro.
É necessário uma reformulação que, além de contemplar o voto impresso e proibir o voto à distância, institua uma Comissão Eleitoral Nacional, cuja função seja unicamente a de organizar operacionalmente cada pleito, sem atribuições judiciárias ou legislativas, e cujo funcionamento esteja pautado pela transparência e estrita observância de uma legislação eleitoral aprimorada que seja definida por quem de direito: o Congresso Nacional.
É necessário uma reformulação que assegure, como letra ativa da Constituição Federal, que a apuração dos processos eleitorais seja pública e aberta a partidos, candidatos e eleitores. E que estabeleça que o uso de tecnologias será condicionado à auditabilidade de cada voto e que a rapidez desejável na apuração não venha às custas da falta de transparência. A reforma do sistema eleitoral brasileiro nos termos gerais propostos acima é a mais importante de todas as reformas no momento.
A já capenga democracia brasileira não pode continuar convivendo com um sistema eleitoral que transformou-se numa genuína caixa preta que, entre outros, parece ter sido programada para impedir a renovação política nos municípios. Uma caixa preta que gerou um resultado eleitoral que basicamente beneficiou o establishment político nacional, o que, seguramente, está na contramão da vontade expressa da maioria dos brasileiros.
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